23/05/2010



"Na terra temos paz
Na terra vivemos a guerra
Por que será que é preciso
Chorar pra se conquistar a alegria?
Será que não entendem
que no choro de um menino
se encontra o mistério
da felicidade mais cristalina?
Existe um ser que se deu a nós
E não fomos capazes de nos entregar a ele.
Assim,vivemos com a tristeza do próximo
E a alegria de um infeliz
Será que um dia acertaremos?
Vamos tentando,sempre
 Vamos tentando,sempre errando
Mas errar sempre... é incapacidade
Vamos no protesto do silencio
ver a vida avançando,
e a devastação se proliferando."

* Esse poema foi escrito por uma pessoa muito especial para mim, uma "amiga-mãe". Nas palavras dela, esse poema me define. Talvez. Acho que não posso ser expresso. Apenas acho.

Para não acreditar no Impulso

Entrara na biblioteca, meio tímido. Seu medo intangível de conversar, os livros eram sua companhia. Em pouco tempo, viu-se em meio a infinidade de longas e altas prateleiras. Virginia Woolf, Oscar Wilde e Sidney Sheldon esparramavam-se, a fartura. Sentia olhos o espiando por entre as prateleiras, cabeças aglomeravam-se à porta para vê-lo - e zombar sem piedade. Retirou, com as bochechas coradas, o primeiro livro da prateleira sem nem ao menos ler o título. Também sentou-se na primeira mesa disponível. Seu olhar correu por toda a estrutura interna da biblioteca: tão espaçosa, mas parecia menor. Então, finalmente, leu o título do livro que pegara tão vorazmente: " A Casa Verde ". Abriu o livro e começou a lê-lo. Estava tão absorto que não percebeu quando Benício sentou-se ao seu lado. Benício: olhos de ave de rapina, humor mordaz, introspectivo, morador da biblioteca.
- Sinto muito - ele disse.
Abaixara a cabeça e conteve o choro, mas chorava por dentro. Olhou, então, para Beníco. Ele sorria, o sorriso ingênuo de uma criança. E ele era. Benício tocou sua mão e disse:
- Espere aqui.
Escondeu-se por entre as prateleira, namorou-as, e voltou com um livro nas mãos.
- Leia esse.
Hesitou. Enfim, deixou o primeiro livro de lado, e tomou a indicação nas mãos. O título do livro não interessa, o que importa era uma sequência de palavras marcadas. Palavras esparsas que formavam o trecho: " Estou aqui. Conta comigo. Eu te entendo, não o julgo, nunca." 
Ao terminar a leitura, sentira os olhos de Benício contemplando-o. Aqueles olhos eram o gancho que o puxava de sua vida submersa, o petróleo que jorrava no campo ermo. A gota de água límpida no deserto do Saara. Compreendendo, Benício disse:
- Depois nos falamos.
Era a promessa de vida após a morte, a terra prometida de Moisés.Todo o passado de humilhação enfim terminara, um personagem saíra dos livros para ajudá-lo. Folheou mais algumas páginas do glorioso livro sem ler uma linha sequer, o pensamento saíra do corpo e projetara-se para fora da biblioteca. Seus dedos mal obedeciam o comando de sua vontade, tremiam de angústia. Borboletas voavam, enlouquecidas, dentro de cada célula do seu corpo. Mas onde há muita vida, há muita dor. 
Ao levantar, levantou o livro. De dentro dele, caiu um espelho que espatifou-se ao encontrar o implacável piso da bilioteca. Em um fragmento ele viu refletido o lábio leporino, imponente, monstruoso. Instintivamente olhou para a porta da biblioteca: um rosto ria, ria  do prazer diabólico da tortura de um semelhante, ria da planta arrancada pela raíz. Ria das ínfimas misérias humanas, mas não menos destrutivas. O corte de uma faca dói tanto quanto um corte por navalha.
Todas as borboletas morreram: borboletas só duram um dia.

Escrever

Quando eu escrevo, é para dinamitar os prédios das mentiras humanas. Eu, Felipe, escrevo por que tenho dinamites de sobra. O problema é que sempre fico sob os escombros.

A Chuva

Ela era Virginia Prados Alencar, uma mulher de nome. Mas era anônima, desconhecida dentro de si mesma. Observava as coisas com um intenso olhar de fome, na certeza de que nada desabaria a seus pés, pois a firmeza de seu olhar é metafísica. Chovia, o céu estava carregado de nuvens negras e severas. A chuva caía e infiltrava-se pela terra, que cedia e derrubava encostas. A chuva é a prova de que o tempo se faz presente, em contato com a gravidade. Estava só, não sairia de casa; não molharia-se na chuva, ela era Virginia Prados de Alencar.
 Foi aí que trovejou a primeira vez.
Encolhida no canto do sofá, recuada de medo, Viginia deparava-se com sua própria solidão.O marido não estava em casa, a firma exigira a presença dele em uma reunião de urgência, em pleno domingo melancólico! Não há chuva sem raios, pensou Virginia, nós é que escondemos o trovão. Raios são o aviso do impessoal, o trovão é a resposta. Só há chuva quando há gravidade, literalmente. Virginia começou a roer o esmalte das unhas, estava tensa sem saber o porquê. Observou o relógio: tique-taque - ainda era muito cedo para ir ao supermercado. Primeiro a chuva precisava cessar, o recuo para dentro de si mesma, o interior pantanoso. Ela era só, o marido era só, a chuva era só. Cada gota é particular. Não: cada gota é união de micro-gotas. Ela toda e ele todo, era união de micro-amores.
Trovejou outra vez.
Levanta-se e fecha as cortinas, liga a TV, mas não presta a mínima atenção ao merchandising. Já não ouvia mais a chuva, ouvia outra coisa. Ouvia o tempero do matrimônio manifestar-se. A chuva uma hora iria parar, o sol voltará e as plantas crescerão, as corolas das flores reinarão absolutas: complexa fotossíntese. Através de um ritual pagão, Virginia entrava na natureza. Toda plena. 
Agora ela queria um espaço para que suas moléculas pudessem expandir-se, leves. Sem pensar nas consequências, num frêmito, atravessou a soleira da porta e dirigiu-se para fora de casa. O sol estava escaldante, o chão estava seco, nenhum guarda-chuva.
Precisava comprar batatas.