23/05/2010

A Chuva

Ela era Virginia Prados Alencar, uma mulher de nome. Mas era anônima, desconhecida dentro de si mesma. Observava as coisas com um intenso olhar de fome, na certeza de que nada desabaria a seus pés, pois a firmeza de seu olhar é metafísica. Chovia, o céu estava carregado de nuvens negras e severas. A chuva caía e infiltrava-se pela terra, que cedia e derrubava encostas. A chuva é a prova de que o tempo se faz presente, em contato com a gravidade. Estava só, não sairia de casa; não molharia-se na chuva, ela era Virginia Prados de Alencar.
 Foi aí que trovejou a primeira vez.
Encolhida no canto do sofá, recuada de medo, Viginia deparava-se com sua própria solidão.O marido não estava em casa, a firma exigira a presença dele em uma reunião de urgência, em pleno domingo melancólico! Não há chuva sem raios, pensou Virginia, nós é que escondemos o trovão. Raios são o aviso do impessoal, o trovão é a resposta. Só há chuva quando há gravidade, literalmente. Virginia começou a roer o esmalte das unhas, estava tensa sem saber o porquê. Observou o relógio: tique-taque - ainda era muito cedo para ir ao supermercado. Primeiro a chuva precisava cessar, o recuo para dentro de si mesma, o interior pantanoso. Ela era só, o marido era só, a chuva era só. Cada gota é particular. Não: cada gota é união de micro-gotas. Ela toda e ele todo, era união de micro-amores.
Trovejou outra vez.
Levanta-se e fecha as cortinas, liga a TV, mas não presta a mínima atenção ao merchandising. Já não ouvia mais a chuva, ouvia outra coisa. Ouvia o tempero do matrimônio manifestar-se. A chuva uma hora iria parar, o sol voltará e as plantas crescerão, as corolas das flores reinarão absolutas: complexa fotossíntese. Através de um ritual pagão, Virginia entrava na natureza. Toda plena. 
Agora ela queria um espaço para que suas moléculas pudessem expandir-se, leves. Sem pensar nas consequências, num frêmito, atravessou a soleira da porta e dirigiu-se para fora de casa. O sol estava escaldante, o chão estava seco, nenhum guarda-chuva.
Precisava comprar batatas.

2 comentários:

  1. Nem comento..
    Ta perfeitoo!!
    Como sempree né!!
    se a pessoa souber prestar atenção e ler nas entre linhas..
    nossa..
    ela vai ver o verdadeiro significadoo!!

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