30/07/2010

Um dia de Perdição

Em uma parte do planeta, um casal estava abrigado em um casebre. Era uma parte erma do planeta. O homem era a marca do primordial. A mulher, retirado do âmago do homem, era a marca da sede. O sagrado feminino? Perderam-se naquela floresta ao seguirem a trilha errada para um acampamento, trilha onde as serpentes esperavam para dar o bote certeiro. Encontraram o casebre no segundo dia da perdição; como o miserável casebre não era habitado - era até meio assustador - eles abrigaram-se por lá até souberem como iriam proceder para sair daquele emaranhado de tons de verde. O Tempo estava nublado.
Sentados no chão do casebre sem móveis, o homem comentou com a mulher:
- A comida acabou.
Para não preocupar o marido a mulher disse, mesmo com o estômago em frangalhos:
- Não estou com fome. Amanhã daremos um jeito.
E adormeceram.
Ao acordarem, saíram do casebre. O Dia estava ensolarado.
- Vamos explorar - disse a mulher indicando uma trilha no sentido oposto à trilha por onde tinham tido acesso ao casebre.  - Talvez encontremos alguma comida por aqui...
Entranharam-se fundo na mata densa e não encontraram nada. Nenhum fruto sequer. A mulher já se encontrava em princípio de desespero e o homem sentia os intestinos contorcerem-se...nada!
Quando pensavam em desistir e apenas caminhavam por impulso de seus pés, eles viram. Um vale formando um grande círculo. E, no meio desse vale, uma árvore frondosa. Com folhas grandes e intensamente verdes,caule firme, raízes fortes. A árvore era tão cheia de frutos grandes a maduros que parecia ter um ventre humano e fértil. Porém, ao entrar um pouco mais no vale, o homem reparou que estava dentro de um grande círculo ressequido de terra. Olhou para o solo: despedaçando-se na secura. A árvore era o centro do vale, a erupção da vida do solo seco. É impossível algo florescer aqui, pensou o homem. A árvore parece até sugar toda a vida do solo... mas os frutos parecem deliciosos!
Olhou para a mulher. Esta estava muito pálida, a boca rachada, a ponto de desmaiar.
- Você está bem? - ele perguntou.
A mulher não respondeu, apenas o encarou...inexpressivamente.
Agora o homem também sentia-se fraco e, com horror, pensou: estou igualando-me a ela. O homem adiantou-se para a árvore de modo a agarrar um fruto em um galho mais baixo. Seu gesto, no entanto, foi interrompido pelo desmaio súbito da mulher. Desesperado, pegou-a no colo e saiu daquele círculo ressequido, voltando a pisar na relva verde e saudável. Na terra úmida e fofa como se toda aquela floresta fosse, em toda a sua extensão, uma grande cova. 
Uma cova espiritual?  
 A mulher só acordou ao deitar no assoalho da cabana.
- O que houve? - o homem perguntou com falhas na voz , de preocupação. Fraca, a mulher respondeu:
-Eu... eu não sei!
A chuva desabara lá fora. O tempo mudara como vinho que mudava para vinagre, que muda para sangue.
- Pegou as frutas?
O homem pareceu nervoso. Esquecera-se das frutas diante do desfalecimento da mulher.
-Esqueci, meu bem. Vou voltar para lá, provavelmente você deve ter desmaiado é de fome.
Súbitamente a mulher exclamou:
- Não vá! Pode adoecer nesta tempestado, e isso é tudo o que eu menos quero. Deixe que somente eu seja a culpada!
A mulher deitara sob os ombros do homem, a chuva conduzia uma torrente de eletricidade. Num piscar de pálpebras, beijaram-se. Entregues à solidão e ao isolamento, fornicaram até que o demônio do cansaço possuísse seus corpos.  A chuva caía com mais intensidade, o barulho dos trovões era ensurdecedor. Contudo, o casal adormeceu.
O homem, como se sonhasse que estava caindo de um prédio, acordou de supetão. A mulher já não estava mais ao seu lado, o sol brilhava mas havia um frescor estranho no ar. Algo alargava-se.
Aonde estaria a mulher?
 Passado alguns momentos aflitivos, ocorreu-lhe a epifania. Seus pés rapidamente o levaram para o vale-sem-vida: e lá estava ela, diante da árvore misteriosa,impassível.
-Glória?- ele chamou.
A mulher sorriu, cúmplice. Apontou para a árvore, os olhos brilhando, o ventre fértil.
-Coma, Gabriel - ela disse. - Veja.... já não desmaio mais de fome. Coma também. Coma, Gabriel.
Gabriel sentia-se fraco, sem vida. Estendeu a mão esquerda, chegou perto da árvore e arrancou um fruto em um galho tímido. O fruto era amorfo, suave e belo. Gabriel olhou para Glória. Os brincos de pérola cintilavam à aurora. Glória sorria e fazia gestos incentivadores com as mãos.
- Coma, Gabriel. Faça a palavra se cumprir. Coma.
E então Gabriel arrancou com a boca um naco daquele fruto. Não tinha gosto, mas matava a fome. Não tinha cheiro mas era inebriante.
- Está consumado - disse a mulher, com lágrimas nos olhos. - Com apenas um fruto criar-se-á a palavra! Com apenas um fruto será vencida a fome perpétua!
Ao dizer isso, a mulher passou a mão sobre o abdôme. Nuvens negras fechavam as portas do céu.
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Anos depois, outros homens foram explorar aquela localidade. Encontaram a árvore ainda viva, frondosa como sempre. 
Dará umas boas resmas, pensou um dos homens. Ao derrubarem a árvore encontrarm, embaixo dela, uma troca de pele de serpente, Escrituras e um par de brincos de pérola..
No caminho de volta, o homem ganancioso, viu dois meninos brincando no meio da floresta. Um dos meninos estrangulava um animal para recolher-lhe o sangue, sob protestos do outro. Num piscar de olhos e os dois meninos haviam sumido. Sumiram para daqui há pouco.
Matando ou morrendo a palavra precisava ser cumprida.O animal, morto, foi abandonado após ter sido estigmatizando na testa. Um dos homens deixara cair uma adaga de prata. A morte reina.

28/06/2010

Momento de Indignação

Antes de mais nada, assistam a esse vídeo:

http://www.youtube.com/watch?v=8mVwQLzddrk


Esse vídeo retrata o abandono nos orfanatos da China, aumentado por uma lei dizendo que um casal não pode ter mais do que dois filhos. Os filhos excedentes seriam retirados.
A situação nesses orfanatos são terríveis, desumanas! Crianças amarradas, juntas, em uma cadeira-penico. Bebês especiais tratados como lixo - especialmente as meninas, pois o menino tem mais valor econômico na China. E , o que é pior: foram descobertos "quartos da morte", onde bebês são abandonados para morrer de fome e doenças. Quando a equipe do documentário entrou em um desses "quartos", encontraram uma menina chamada Mei Ming - que significa " sem nome" , em chinês - à beira da morte. Desnutrida e com ferimentos nos olhos. Mei Ming nessa hora chora; e esse choro... esse choro foi choro de sobrevivênca. Foi choro pela vida! Abandonada duas vezes e tratad como lixo, Mei Ming faleceu 4 dias depois da filmagem.
Aonde iremos parar?
China, capital do desenvolvimento... estou vendo muito desenvolvimento. Mas desenvolvimento da crueldade velada.
O documentário foi dedicado a Mei Ming.
Dedico esste blog a Mei Ming.

27/06/2010

Pensamento [ trecho do meu segundo livro]

Raciocínio é a lógica dedutiva diante dos fatos. Pensamento é a visão subjetiva ( e às vezes abstrata) da realidade. O meu raciocínio não guia esse relato, pois não estou deduzindo nada - e muito menos usando a lógica. O que eu escrevo é pensamento tão puro, que o que eu digo é subjetivo. Mas o mesmo tempo tão genérico. O que eu escrevo é tão pensamento que se ,algo interromper o meu pensar, eu perco o que estou fazendo. Um pensamento perdido é uma pérola no Atlântico: um caos, só. Esse é um relato frágil, na corda bamba. Eu pesco o pensamento, outro dia volto para casa de anzol vazio. É tudo tão difuso. O pensamento só é visto através de um nevoeiro. O pensamento não pode ser visto diretamente: queima-se em glória. 
O pensamento pensa?
Acho que sim. Sempre tenho pensamentos na hora certa. Não tenho ninguém: tenho o pensamento. Às vezes ele me surpreende através do que eu escrevo, esta é a prova que meu pensamento fala por si mesmo. Escrever e pensar é brasa que consome a lenha aos poucos. A lenha no entanto é infinita, o crepitar é doloroso.
Nesse momento algo me inquieta: acho que vou parar de relatar. Isso não é uma biografia minha. Isso é: eu. Biografia é uma vida contada em ordem cronológica e coerente. O que escrevo é completamente diferente: o tempo é o meu aliado, não inimigo.
Oh,  sinto que me entrego ao diabólico com uma delicadeza angelical.. Por detrás daquilo que é diabólico há uma glória intangível. Não existe glória sem o diabólico.  Não há sinônimo sem antônimo nem significante sem significado. 
O pecado é o sangue em minhas veias.
Minha árvore genealógica é um filete de sangue escorrendo por todo o caule. Vejo um ponto minúsculo o chão. Esse ponto sou eu, esmiuçando a formação e o porquê das coisas. 
O por que da subjetividade?
Preciso aprender a me entregar a dignidade do silêncio, o melhor do segredo não se conta. O segredo é a descoberta individual do segredo. Cada trilha é única. Nenhum bandeirante poupou esforços num golpe de machado e facão para agredir e penetrar na floresta. É preciso desnudar a mata para que o meu corpo esguio possa passar. O sol queima, mas não tenho sombra: cortei as árvores para construir pontes para atravessar os rios. Pontes que me levaram ao - ao  nada. Que saudade das árvores, os Originais da Criação. Isso é a falsa transcendência, coisa que adequei à minha vida para que a vida infinita pudesse caber em meu invólucro limitado.
Devastei as matas - o neutro - em busca do ouro. Encontrei o ouro e enriqueci - mas enriqueci de quê?
Enriqueci de pobreza.
Enquanto eu permaneci intocado por mim mesmo eu estava cumprindo com o meu segredo. Quando me toquei o segredo desapareceu de minhas mãos: eu não era mais ingênuo, era malicioso. Malicioso, pois
comecei a usar o segredo para criar uma nova Falsa Transcendência, ascendendo aos limites da minha inconsciência, eu, o malicoso.
Mas eu sei que, se eu fechar as mãos com força dentro de um silêncio, eu consigo ouvir o barulho da minha criculação sistêmica. A vida em mim é insistente. Mas meu impessoal implora, implora - implora por um coágulo.
Que as matas renasçam para dentro dos meus vasos sanguíneos, na fertilidade morta dos meus tecidos. Que morte linda: morte por resurreição!
Oculto dentro de mim o sagrado mistério da criação: a transfiguração da matéria orgânica em matéria inorgânica e vice-versa. E outras vez caio nas águas do impessoa, águas que impulsionam essa transformação. Nesse momento estou entregue ao impessoal, a força tão primeira. Impessoal é o radar sensitivo, pura erosão eólica. Sim, neste momento estou em Graça. Não entendo o mistério, mas ele está dentro de mim e eu estou dentro. Sei que o que eu escrevo tem uma força delicada, tão delicada como a primeira molécula de matéria que pulsa. O impessoal manisfesta-se nas horas de transição: na transfiguração da matéria orgânica para matéria viva.
E na degradação da matéria viva, de volta as origens. Degradação.  Pois tudo o que é vivo passará pelo reverso ciclo do impessoal.
Degrada-se molécula por molécula da complexa aglomeração Orgânica, até que sobra o nada - só sobra o impessoal. 
Vou fugir, vou fugir. Talvez eu esteja enlouquecendo. Não, não estou: estou é penetrando no mistério da carne crua,proteínas, aminoácidos, química, ligações, a pré-história. Estou entrando na biblioteca do impessoal. Cada segundo é um segredo impessoal. Não estou sendo careta, nem quadrado: estou dando  César o que é de César. Somos o fruto vivo da fecunda mente do impessoal.
Sorrio. Plenitude que reina sobre mim, coroa de folhas secas, coroa de ciclo reverso.
Quando uma verdade mente para outra é o que chamamos de omissão?
Omissão é falsa transcendência. Não quero transcender, quero ceder. Ceder, pois ceder é herança do impessoal. O ciclo reverso me acompanha, não estou nunca só.
As ondas retrocedem: ciclo reverso. O colágeno foge: ciclo reverso.
A conexão do mundo me espanta, tudo está interligado. E eu pago um preço pela sagrada compreensão.
Às vezes preciso de limites, não sei me restringir. Gosto de fluir como leite que derrama, bolsa que arrebenta.
Eu me derramei, sêmen que jorra em busca da criação da vida. Eu petróleo negro, outro das trevas, fruto de milhares de séculos de matéria acumulada.
Só sei que, enquanto eu estiver vivo, continuarei me seguindo. Enquanto eu for orgânicamente coerente, desfrutarei de tudo o que é meu por direito. Já estou esquecendo do meu passado, oh, estou sim. Mas é do meu passado que construo a continuidade do meu raciocínio.
Sinto que já sei o que é o amor, ah, já faço uma ideia.
Tudo é questão do que passa e o que não passa. Eu passarei. O amor não passará. Este é um retrato escrito de um amor puro pelas letras e pela vida. Este retrato não passará, este retrato não tem fim.
Este retrato dá um forma a um amor puro, fio de um casulo.
Amor? Tique - pensameto - taque.
Amor é...

25/06/2010

À Procura de Deus

Ela cerrou as pálpebras,fantasiou e tornou a abri-las: o mundo ainda estava ali. Diante dela. Com um fruto a ser colhido. Marta aprendera desde cedo que o mundo é produto da germinação daquilo que sua consciência chamava de: Deus?
Deus é aquilo que parece com um fruto: colhe-se. Mas de qual árvore? Qual semente? A empregda tinha já ido embora, estava só diante do susto de uma vertigem. Uma vertigem que a levara ao escuro de si mesma. As pálpebras fechadas, o tremor quase imperceptível, o repentino desejo pelo marido. Havia margaridas no parapeito da janela da cozinha, o sol se punha por dentro das pétalas brancas - amarelecidas pelo tempo que durou uma manhã e toda uma tarde. Tornou-se a perguntar: onde estava Deus?
Ele esquecera a serva mais fiel, mais assídua às missas...dizimista...por Deus! O mundo a intrigava, tudo a jogava em um delicado abismo sem que ela pudesse deixar de contemplar as margaridas e esperar o marido com um beijo programado ao ver o olhar de fadiga do seu - do seu homem.
Onde estava Deus?
Deus era coisa palpável ou ilusão? 
Mas se há o pecado, há redenção. A redenção é no próprio conceito humano de "deus". O sol se punha levando uma tarde de ousadia. Tarde que Marta nunca mais iria repetir: ela não pensava nunca, somente agia.
Igreja.Marido.Filhos.Contas.
Ela caíra na gloriosa graça de um pecado: suicídio vital. Mas ela escolhera.

15/06/2010

Conceito de Morte

Estou andando sem muitas inspirações, e isso é absolutamente insuportável. Acho que minha " felicidade clandestina" é ser sempre um papel escrito - papel em branco é um tormento.  Enquanto todos torcem pelo Brasil na Copa do Mundo, eu torço para eu renascer. Até torço pelo Brasil mas - mas que diferença faz?
O povo cai em plena desgraça todos os dias ( como erosão em rocha ) e as atenções voltadas para a Copa. A bola rola e o individual perde-se no inconveniente da alienação. Por enquanto estou morto. Por enquanto.

23/05/2010



"Na terra temos paz
Na terra vivemos a guerra
Por que será que é preciso
Chorar pra se conquistar a alegria?
Será que não entendem
que no choro de um menino
se encontra o mistério
da felicidade mais cristalina?
Existe um ser que se deu a nós
E não fomos capazes de nos entregar a ele.
Assim,vivemos com a tristeza do próximo
E a alegria de um infeliz
Será que um dia acertaremos?
Vamos tentando,sempre
 Vamos tentando,sempre errando
Mas errar sempre... é incapacidade
Vamos no protesto do silencio
ver a vida avançando,
e a devastação se proliferando."

* Esse poema foi escrito por uma pessoa muito especial para mim, uma "amiga-mãe". Nas palavras dela, esse poema me define. Talvez. Acho que não posso ser expresso. Apenas acho.

Para não acreditar no Impulso

Entrara na biblioteca, meio tímido. Seu medo intangível de conversar, os livros eram sua companhia. Em pouco tempo, viu-se em meio a infinidade de longas e altas prateleiras. Virginia Woolf, Oscar Wilde e Sidney Sheldon esparramavam-se, a fartura. Sentia olhos o espiando por entre as prateleiras, cabeças aglomeravam-se à porta para vê-lo - e zombar sem piedade. Retirou, com as bochechas coradas, o primeiro livro da prateleira sem nem ao menos ler o título. Também sentou-se na primeira mesa disponível. Seu olhar correu por toda a estrutura interna da biblioteca: tão espaçosa, mas parecia menor. Então, finalmente, leu o título do livro que pegara tão vorazmente: " A Casa Verde ". Abriu o livro e começou a lê-lo. Estava tão absorto que não percebeu quando Benício sentou-se ao seu lado. Benício: olhos de ave de rapina, humor mordaz, introspectivo, morador da biblioteca.
- Sinto muito - ele disse.
Abaixara a cabeça e conteve o choro, mas chorava por dentro. Olhou, então, para Beníco. Ele sorria, o sorriso ingênuo de uma criança. E ele era. Benício tocou sua mão e disse:
- Espere aqui.
Escondeu-se por entre as prateleira, namorou-as, e voltou com um livro nas mãos.
- Leia esse.
Hesitou. Enfim, deixou o primeiro livro de lado, e tomou a indicação nas mãos. O título do livro não interessa, o que importa era uma sequência de palavras marcadas. Palavras esparsas que formavam o trecho: " Estou aqui. Conta comigo. Eu te entendo, não o julgo, nunca." 
Ao terminar a leitura, sentira os olhos de Benício contemplando-o. Aqueles olhos eram o gancho que o puxava de sua vida submersa, o petróleo que jorrava no campo ermo. A gota de água límpida no deserto do Saara. Compreendendo, Benício disse:
- Depois nos falamos.
Era a promessa de vida após a morte, a terra prometida de Moisés.Todo o passado de humilhação enfim terminara, um personagem saíra dos livros para ajudá-lo. Folheou mais algumas páginas do glorioso livro sem ler uma linha sequer, o pensamento saíra do corpo e projetara-se para fora da biblioteca. Seus dedos mal obedeciam o comando de sua vontade, tremiam de angústia. Borboletas voavam, enlouquecidas, dentro de cada célula do seu corpo. Mas onde há muita vida, há muita dor. 
Ao levantar, levantou o livro. De dentro dele, caiu um espelho que espatifou-se ao encontrar o implacável piso da bilioteca. Em um fragmento ele viu refletido o lábio leporino, imponente, monstruoso. Instintivamente olhou para a porta da biblioteca: um rosto ria, ria  do prazer diabólico da tortura de um semelhante, ria da planta arrancada pela raíz. Ria das ínfimas misérias humanas, mas não menos destrutivas. O corte de uma faca dói tanto quanto um corte por navalha.
Todas as borboletas morreram: borboletas só duram um dia.

Escrever

Quando eu escrevo, é para dinamitar os prédios das mentiras humanas. Eu, Felipe, escrevo por que tenho dinamites de sobra. O problema é que sempre fico sob os escombros.

A Chuva

Ela era Virginia Prados Alencar, uma mulher de nome. Mas era anônima, desconhecida dentro de si mesma. Observava as coisas com um intenso olhar de fome, na certeza de que nada desabaria a seus pés, pois a firmeza de seu olhar é metafísica. Chovia, o céu estava carregado de nuvens negras e severas. A chuva caía e infiltrava-se pela terra, que cedia e derrubava encostas. A chuva é a prova de que o tempo se faz presente, em contato com a gravidade. Estava só, não sairia de casa; não molharia-se na chuva, ela era Virginia Prados de Alencar.
 Foi aí que trovejou a primeira vez.
Encolhida no canto do sofá, recuada de medo, Viginia deparava-se com sua própria solidão.O marido não estava em casa, a firma exigira a presença dele em uma reunião de urgência, em pleno domingo melancólico! Não há chuva sem raios, pensou Virginia, nós é que escondemos o trovão. Raios são o aviso do impessoal, o trovão é a resposta. Só há chuva quando há gravidade, literalmente. Virginia começou a roer o esmalte das unhas, estava tensa sem saber o porquê. Observou o relógio: tique-taque - ainda era muito cedo para ir ao supermercado. Primeiro a chuva precisava cessar, o recuo para dentro de si mesma, o interior pantanoso. Ela era só, o marido era só, a chuva era só. Cada gota é particular. Não: cada gota é união de micro-gotas. Ela toda e ele todo, era união de micro-amores.
Trovejou outra vez.
Levanta-se e fecha as cortinas, liga a TV, mas não presta a mínima atenção ao merchandising. Já não ouvia mais a chuva, ouvia outra coisa. Ouvia o tempero do matrimônio manifestar-se. A chuva uma hora iria parar, o sol voltará e as plantas crescerão, as corolas das flores reinarão absolutas: complexa fotossíntese. Através de um ritual pagão, Virginia entrava na natureza. Toda plena. 
Agora ela queria um espaço para que suas moléculas pudessem expandir-se, leves. Sem pensar nas consequências, num frêmito, atravessou a soleira da porta e dirigiu-se para fora de casa. O sol estava escaldante, o chão estava seco, nenhum guarda-chuva.
Precisava comprar batatas.